sábado, 15 de março de 2008

FACULDADE CENECISTA DE OSÓRIO – CURSO DE GEOGRAFIA
Disciplina de Geografia do Brasil III - Prof. Marcio Fenili Antunes

Nordeste: dimensões locais e regionais nas estratégias de desenvolvimento:::Jan Bitoun ( pesquisador em Geografia Urbana no Departamento de Ciências Geográficas/UFPE )

Pesquisador em Geografia Urbana, em particular no campo das políticas públicas, sempre reconheci a importância de pensar, além dos limites físico - territoriais da cidade, as dinâmicas sócio - espaciais regionais para poder entender o contexto das práticas localizadas que, como pesquisador engajado nos trabalhos do Observatório PE de Políticas Públicas (UFPE - Mestrado em Geografia / FASE NE), enfoco nos estudos que nos ocupam. Apresento ao debate algumas idéias que reputo relevantes para construir uma síntese, capaz de destacar linhas principais de reflexão sobre as estratégias de desenvolvimento no Nordeste contemporâneo sem ceder ao reducionismo e à excessiva simplificação que são os riscos de um exercício desta natureza.
Para me guiar, lembrarei um texto escrito, há alguns anos, por Delfim Neto na sua coluna do jornal Folha de São Paulo. O ministro relatava que, na entrada de um departamento de Matemática de uma universidade de um país da Escandinávia, afixaram cartaz com os seguintes dizeres: "Nos não conseguimos responder a todas nossas questões nem resolver todos nossos problemas; mas, com muito trabalho e esforço, conseguimos formular questões cada vez mais precisas sobre problemas cada vez mais relevantes." Creio que nisto reside nossa tarefa comum de produtores de ciência inseridos na sociedade e responsáveis para gerar entendimentos cada vez mais precisos da problemática das ações visando reorganizar o território. As políticas públicas, sejam elas estatais ou não estatais, empreendidas por agentes que desenvolvem suas estratégias, tomando sucessivas decisões resultantes de intenções, materializam-se por ações que modificam o território, redesenhando as características da vida coletiva, ampliando, mantendo ou reduzindo o quadro de oportunidades para diversos segmentos sociais, participes do referido território. Complementando esse questionamento sobre as atuais estratégias de desenvolvimento, refiro-me às dimensões de escalas que assumem, considerando que recentes tendências de promoção da dimensão local, exemplificadas por exemplo pelas iniciativas do Banco do Nordeste do Brasil denominadas "Farol do Desenvolvimento", precisam ser iluminadas pelo status atribuído à dimensão regional pelas políticas nacionais de desenvolvimento territorial, desenhadas pelo Governo Federal no seu "Brasil em Ação" e pela recente extinção da SUDENE. A dimensão macrorregional teria se esvaído, substituída por investimentos concentrados em "eixos de desenvolvimento", iniciativas estaduais ou municipais de natureza competitiva, associadas a estratégias empresariais? Nesse novo desenho, em que escalas e em que condições os agentes locais encontrariam condições de inovações capazes de gerar territórios mais solidários, onde processos endógenos de geração de oportunidades e de organização romperiam com a histórica desigualdade que é a marca da nossa sociedade e do nosso território, vistos em termos globais?
Para subsidiar o debate, refiro-me no essencial a três obras, que se constituem em balizas indispensáveis para introduzir as questões levantadas: "Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI" de Milton Santos e Maria Laura Silveira (Record, 2001), "Ensaios sobre o Desenvolvimento Brasileiro: Heranças e Urgências" de Tânia Bacelar de Araújo (Revan, 2000) e a "Terra e o Homem no Nordeste" de Manuel Correia de Andrade (Brasiliense, 1963). Com base nesses três livros, estruturei minha fala em duas grandes partes, necessariamente sintéticas: A Terra e o homem na formação regional na qual procuro discutir o papel do pensamento nacional na emergência da região Nordeste e o caráter reducionista e conservador de políticas nacionais de desenvolvimento que transformaram decisivamente as materialidades regionais sem alterar profundamente o quadro sócio - político herdado da colônia; O Nordeste e a Globalização: Nordeste, Nordestes, na qual tento esboçar as principais condições das atuais formas de integração do território regional no âmbito das tendências da sócio - economia internacional e na qual identifico os dilemas e possibilidades do desenvolvimento local, no duplo contexto das heranças acumuladas no decorrer da história nacional e das práticas sócio - políticas em curso, chamando atenção sobre a relevância de agentes aos quais se dá geralmente pouca visibilidade, o que vem entravando reais possibilidades de inovações e de desenvolvimento.
A terra e o homem na formação regional
Manuel Correia de Andrade em 1963 publica A Terra e o Homem no Nordeste, interpretando a região a partir da questão da apropriação do solo. Essa obra, influenciada por Caio Prado Júnior, o é também pelo movimento da Reforma Agrária, muito ativo na época. Leva o autor a formular uma interpretação que extrapola os limites da geografia tradicional, regional - agrária e descritiva, e que ressalta um traço essencial da região que a diferencia das demais: sua definição, a partir da apropriação do solo, já foi elaborada no período colonial. Esse fato marca profundamente a sociedade e o território nordestino, que se estruturam no âmbito da apropriação colonial, como parte de um conjunto formado pelas Antilhas, o Caribe e o litoral brasileiro, todas terras tropicais cedo articuladas à economia européia e à África, num sistema colonial transatlântico definido nos séculos XVI, XVII e XVIII. A inserção nesse espaço colonial desenha uma sociedade que se referencia culturalmente na Europa e na África, mantendo traços específicos até hoje nas suas expressões artísticas, e que atribui usos ao território principalmente através dessa inserção.
O território é loteado em capitanias e agenciado em três grandes sub - espaços no Nordeste: · O primeiro é dominado pelo latifúndio exportador, das plantações de cana-de-açúcar, da mão-de-obra escrava africana, dos conhecidos engenhos, casas grandes e senzalas onde se constitui uma sociedade do Nordeste Oriental que "olha para fora", através do comércio atlântico do açúcar e dos escravos.
· O segundo sub - espaço é formado, no contexto da apropriação colonial, pelas fazendas pecuaristas do Sertão, implantadas no decorrer de uma longa guerra contra os povos indígenos, capitaneada pela Coroa Portuguesa. Nascida na guerra, a fazenda pecuarista precisa tornar-se para dentro, encontrar meios locais de auto - defesa, na exploração da natureza, na subdivisão das propriedades pelas famílias, na destruição e assimilação dos Índios. Mantém para fora relações temporárias e excepcionais e funda-se em traço autárquicos; o que a diferencia do latifúndio exportador do Nordeste Oriental.
· O terceiro sub - espaço, hoje chamado Pré - Amazônia ou Meio - Norte, corresponde nos tempos da apropriação colonial a um outro meio, o das "drogas do Sertão". Economia de pouca gente que vai se dispersando nas florestas e cerrados, extraindo da natureza alguns produtos comercializados através do sistema de intermediação do aviamento. A apropriação do solo não se consolida na era colonial, mas depois, já no século XX.
Esses três sub - espaços mantêm articulações entre si: emissão de mão-de-obra, ajudas militares, troca de mercadorias. Algumas mais articuladoras que outras como o algodão e a rede ferroviária construída na segunda metade do século XIX pelos Ingleses para reunir e exportar esse produto. Mas antes, nos tempos coloniais, esses espaços, que a posteriori denominamos Nordeste, têm suas identidades bastante diferenciadas em função dos modos de apropriação do solo.
Como surge o Nordeste na interpretação nacional? Em tempos recentes, pois é somente com a chegada em 1807 no Rio de Janeiro de Dom João VI , Rei de Portugal, fugindo de Napoleão que se unem politicamente o Brasil e o estado do Grão - Pará - Maranhão, que formavam dois conjuntos coloniais separados. Toda a Amazônia e o Maranhão passam a fazer parte do Brasil praticamente as vésperas da independência. Politicamente, então, não existia uma entidade Nordeste. Até os anos 20 do século XX, cem anos após a Independência, fala-se muito pouco do Nordeste. Está incluindo na denominação Norte que atravessou o Império e a República. Ainda nos anos sessenta era comum em São Paulo e no Rio de Janeiro chamar de "nortistas" os nativos do Nordeste e do Norte.
Afastado do centro do poder, "a Corte" do Império e a "Capital" da República, o Nordeste emerge lentamente na interpretação nacional, destacando-se o episódio de Canudos e a descoberta de traços específicos da nacionalidade, a terra e o homem, descritos em 1905 por Euclides da Cunha em Os Sertões, obra que mexe com a opinião pública instruída da capital republicana, Rio de Janeiro. Na introdução ao Censo de 1920, Oliveira Viana trata da Formação do povo brasileiro, expressando a visão oficial daquele tempo, há oitenta anos somente: "No Norte e no Centro o processo arianizante tem uma marcha menos sensível e rápida, dado porém, a maior fecundidade do elemento branco em confronto com o lado do negro, do índio e do mestiço, é óbvio que a organização da nossa gente também se está operando, lentamente embora, nas regiões Centrais e Setentrionais do país, nas zonas da costa mais intensamente que nas zonas do interior". Respondendo de uma certa forma a Os Sertões de Euclides da Cunha, que aludiam à formação de uma raça sertaneja, Oliveira Viana termina: "Na massa cabloca do Nordeste o tipo que a de emergir no fim desse trabalhoso processo seletivo, a que ele está sujeita, a de ser ali, como ao Centro, como ao Sul, como em todo país, o ariano vestido com a libré dos nossos climas tropicais." Essa era a interpretação oficial do Brasil em 1920, uma interpretação baseada sobre a raça e uma interpretação não só baseada na raça, mas também racista, na medida que havia a idéia de que o Brasil se desenvolveria à medida que se tornasse branco ("ariano").
O embranquecimento representava o desenvolvimento e o Norte e o Nordeste eram vistos como regiões periféricas e atrasadas, não por razões econômicas mas em função da lentidão do processo de embranquecimento. Portanto, constata-se que, ainda pouco diferenciados, Norte e Nordeste já carregam o estigma de regiões atrasadas na medida que eles não embranquecem tão rápido quanto as outras. Isso, no Censo oficial de 1920.
Em décadas seguintes, há na interpretação nacional diversos episódios de regionalização, lançando mão de conceitos e métodos diferentes. Mas, cabe destacar que se reafirma por outros motivos a característica inicial de periferia atrasada atribuída desde o início do século XX ao Nordeste, bem como ao Norte.
O IBGE elabora a divisão regional do Brasil em 1940, visando organizar o conhecimento sobre o país, promover programas de ensino e estabelecer um quadro nacional oficial para as informações estatísticas (vide artigo de Fábio Guimarães, na Revista Brasileira de Geografia de 1941, "As Regiões Naturais do Brasil"). Procura essa divisão regional do território nacional a partir da geografia física, como se fazia na época, tentando definir cada grande região brasileira a partir dos fatos físicos, destacando entre estes um que seria o principal. Ë deste trabalho que sai o Nordeste oficial, tal como o conhecemos: região caracterizada essencialmente / oficialmente pela seca, pelo clima semi-árido, (na realidade, próprio de uma parte do Nordeste e não de todo o Nordeste); essa perspectiva, posta no coração do método interpretativo da região lhe atribui de partida status de "região - problema". Também, no mesmo trabalho, o Norte sai como a região da selva, do deserto humano. Ambas as regiões configuram-se como "regiões problemas" no pensamento nacional; nordestinos e nortistas acabarão também pensando isso, desenhando um quadro negativo e fortalecendo laços de dependências políticas em relação ao centro "dinâmico" do país.
Nos anos 1960 -1970, realiza-se uma terceira regionalização, em outras bases metodológicas, a partir da análise da rede urbana brasileira (Pedro Geiger: "Regionalização" Revista Brasileira de Geografia - 1967; Espiridião Faissol "Estudo da Rede Urbana Brasileira, para fins de planejamento" Revista Brasileira de Geografia - 1971). Com base na teoria das localidades centrais, observa-se uma rede urbana bastante hierárquica, desenvolvida, que permite a circulação das mercadorias, de forma relativamente harmônica, no Centro do Brasil, quer dizer, nas regiões Sudeste e Sul. No Centro - Oeste , Norte e Nordeste somente o litoral oriental do Nordeste dispõe de rede urbana mais ou menos organizada, favorável à circulação e distribuição das mercadorias que o Brasil passou a produzir com a expansão da indústria. Mais uma vez, reproduz-se o mapa de Oliveira Viana, identificando essas regiões com o atraso, mesmo se por outros motivos que aqueles presentes no Censo de 1920. Essa constante na interpretação nacional influenciou e, quiçá, continua influenciando agentes das políticas nacionais e locais, dificultando a formulação de análises mais endógenas, ou mais centradas sobre características diversificadas das materialidades encontradas na região. Simplifica-se demasiadamente a questão regional, interpretando-a a partir da seca e do atraso, legitimando políticas "redentoras", pouco afeitas a realidades locais e regionais mais complexas. Essas poderiam haver emergido das produções interpretativas locais (entre essas, a obra de Gilberto Freyre, a partir do Manifesto Regionalista de 1926) , mesmo muito influenciadas por essa interpretação nacional. Mas, a própria denominação das regiões brasileiras expressa a predominância histórica do movimento interpretativo de cima para baixo: O nome das nossas regiões Nordeste, Sudeste, Norte, Centro Oeste e Sul são referências explicitas ao território nacional. Não são regiões, são quadrantes do território nacional e não correspondem à criação local. Observa-se que se formos falar de do desenvolvimento local, usamos muitos nomes locais, freqüentemente de origem indígena como "Seridó'' e "Carirí" e referente a raízes históricas; ao passo que, ao dizer Nordeste, refiro-me a uma delimitação de um quadrante do território nacional, com historicidade muito mais reduzida, conforme tentei mostrar.
As estratégias de desenvolvimento até a década de setenta, aplicam-se a esse Nordeste simplificado oriundo da interpretação nacional e visam corrigir alguns traços do "atraso nordestino".
A política da seca, não é uma política de desenvolvimento, pois repete indefinidamente as mesmas intervenções sem mudar as estruturas (poder, circuitos de comercialização, estruturas agrárias) que de fato tornam insustentável a convivência da população com o também repetido e cada vez mais conhecido fenômeno climático. É muito mais uma política de manutenção do equilíbrio político necessário à unidade nacional, visando amenizar tensões e regular relações sociais no sentido da permanência das relações de poder, Isso pode ser analisado numa seqüência que vai do Açude de Orós até o projeto de transposição do rio São Francisco, objeto de interessante debate na TV Cultura entre o Professor Aziz Ab'Saber e o Presidente da CODEVASF . A política da seca é apresentada em nível nacional e para nos mesmos como a grande política de desenvolvimento, sempre "redentora" e, pela sua própria repetição desde o Império, ganhou esse status, sendo aceita interno e externamente como o caminho principal da superação do "atraso nordestino".
Com a mesma finalidade, de manutenção do status quo político das elites locais no quadro da unidade nacional, pode ser citada a política de subsidio, protegendo a acumulação a partir da produção açucareira e alcooleira regional através do IAA, de 1933 até 1989, quando foi suprimido este Instituto do Açúcar e do Álcool (o mesmo podendo se dizer do cacau no Sul da Bahia). Nesse período, apesar de todos os discursos e planos visando a diversificação da agricultura no Nordeste Oriental, manteve-se o predomínio da cana-de-açúcar, congelando as relações sociais e culturais constituídas desde os tempos coloniais.
Para o Nordeste Ocidental, a manutenção das estruturas de poder foi garantida pela reprodução contemporânea da estrutura latifundiária, no decorrer de uma "guerra pela terra" que ocorreu paralela à colocação no circuito econômico de muitas riquezas daquela região (minerais, madeira, produtos agrícolas, inicialmente arroz e hoje soja, principalmente). O modo como se deu a expansão populacional, permitindo que se reproduzisse o latifúndio a Oeste do Nordeste, em direção a Amazônia, foi outro componente do pacto para manutenção do equilíbrio político e da apropriação concentrada da riqueza que continuam caracterizando o Nordeste.
Se as políticas da seca, do açúcar e da propriedade apontam para a conservação da velhas estruturas, essas foram lentamente abaladas pela política de integração nacional das infra-estruturas e dos serviços, iniciada nos anos 30 e acelerada desde os anos 50: constituição da rede de infra-estrutura interligando o Nordeste ao resto do pais via estradas, telecomunicações, redes bancarias. São infra-estruturas e serviços bem concretos, bem materiais, desenvolvidos no âmbito de uma política nacional bastante organizada e planejada pelo estado central, a exemplo do Plano Rodoviário Nacional de 1944, ainda na época do Estado Novo. Foi realizado a partir do final da década de 50 e na década de 60, com a construção de Brasília e depois com a construção da Rio - Bahia e outras rodovias. Houve planejamento de longo prazo, elaboração de projetos de engenharia e realizações que transformam as configurações territoriais, ao mesmo tempo que as políticas ditas regionais (Seca, Subsídios e Expansão para Oeste) garantiram a grosso modo a manutenção das estruturas sociais com foi visto. O mesmo aplica-se à eficiente política de construção das redes de energia, telecomunicação, serviços de educação superior e outros, também resultando de planejamento estatal de longo prazo.
Considerando esse descompasso entre a inovação no campo das redes materiais que equiparam o Nordeste e a conservação das estruturas sociais, o Nordeste passou a assumir papeis específicos na Divisão Territorial do Trabalho em escala nacional: O maior foi o de exportação de mão-de-obra, pouco qualificada, mas também de mão-de-obra qualificada. Todos os estados nordestinos são emissores de mão-de-obra braçal e pólos de "fuga dos cérebros". Outros papeis ganham importância nas últimas décadas: Nordeste como fronteira de expansão da industrialização nacional, com taxas de crescimento superiores a muitas outras regiões, através inclusive da política da SUDENE, e assentamento de diversos empreendimentos industriais; Nordeste, como fronteira de mercado para muitas empresas de distribuição e prestação de serviços, expandindo suas redes na região; Nordeste, fronteira de recursos para novas culturas ou exploração mineral como é o caso no Oeste baiano, no Piauí, no Maranhão, no Sertão do São Francisco que recebem correntes migratórias para viabilizar a mobilização desses recursos.
Então, essas políticas de equipamento reordenam no território a distribuição das oportunidades de geração de riqueza e da própria população e foram acompanhadas pela pesquisa geográfica que elabora na época estudos sobre redes urbanas, para entender os impactos dessa infra-estruturação, e outros de regionalizações agrárias, ambas promovidas pela SUDENE. No final dos anos 70, o Nordeste deixa de ser visto somente como a região da seca, uma região com um único fator explicativo, e precisa-se entender melhor a complexidade geográfica de uma região com muito mais "faces", carecendo na sua regionalização de uma visão mais local, identificando uma nova geografia a ser reconhecida nesse Nordeste.
O Nordeste e a Globalização: Nordeste, Nordestes
Mas é exatamente nesse período que também se modificam as condições internacionais que formam o ambiente de formulação das estratégias nacionais de desenvolvimento. Essas modificações, segundo iremos defender, atropelaram a própria concepção do desenvolvimento regional, sem que esse tivesse chegado a ser reformulado a partir de uma visão endógena, levando em conta a diversidade das configurações territoriais que estavam se desenhando no Nordeste.
A chamada globalização é uma mudança muito real das condições de acumulação do capital e portanto da inserção dos fatores econômicos no território. Tânia Bacelar destaca entre outras mudanças a "financeirização da riqueza". Quando o Presidente Nixon desvincula em 1971 o dólar do ouro, provoca uma produção acelerada e muito maior da moeda norte - americana sob a forma de "Pétrodólares", "Asiandólares" e "Eurodólares", que constituem uma massa enorme de meio circulante, permitindo a criação de novos produtos de crédito associados à transformação das condições de informação e circulação facultadas pela informática e pela liberalização da regulamentação aplicadas aos mercados financeiros. Acostumamo-nos a ouvir pela manha que as bolsas de Tóquio e outras praças asiáticas fecharam de tal modo, que as européias abrem com tal tendência, e que as bolsas dos Estados Unidos vão abrir com tal outra: um movimento que aproveita os fusos horários, 24 horas sobre 24 horas; uma competição permanente e instantânea entre quem decide os investimentos.
Nesse contexto novo, de extremada competição entre investidores, como atuam os governos nacionais e subnacionais? Milton Santos no livro ''Por uma Outra globalização'' (Record, 2000) explica muito bem como esse paradigma da competição hoje vem os influenciando-os de forma indiscriminada. Adotaram a competição, que era próprio do mundo da empresa, como um valor para planejar suas ações de governo. Todos os atores sociais, e entre eles os governos subnacionais e locais, acham que devem competir, instituindo uma guerra permanente entre os lugares e as pessoas. A adoção do paradigma da competição, consubstanciada no país pela guerra fiscal e pela incapacidade de gerar esferas de cooperação entre pessoas e lugares, é especialmente desastrosa para o Nordeste.
Na sua estrutura sócio - política, herdou uma extrema desigualdade e, como foi visto, a manutenção de poderes pouco contestados, fazendo com que amplos setores da população não consigam participar da elaboração de estratégias coletivas de desenvolvimento. Assim, os planos estratégicos reduzem-se na maioria das vezes à expressão de poucos e consolidados interesses particulares que continuam drenando para si os investimentos que se dirigem para os diversos lugares da região. Outro fator desfavorável para o Nordeste deve-se à concentração do conhecimento e da tecnologia, que são elementos fundamentais do novo modo de produzir, em alguns poucos pontos do território. Exemplificando, em 1991, os 3% de chefes de domicilio com 15 ou mais anos de estudo estavam concentrados em Fortaleza, Salvador e sobretudo no Recife (IBGE - Censo 1991).
Considerando esses dois fatores, o paradigma da competição leva à adoção de políticas que, em vez de tratar do território na sua diversidade, tendem a ampliar as desigualdades entre lugares, selecionando alguns já empresariados que teriam vocação para competir. No documento "Brasil em Ação", que norteia a política federal, há claras opções visando fortalecer os focos competitivos, sendo assim qualificados aqueles poucos lugares que já mantém alguma articulação para fora: Carajás, os pólos de soja, os perímetros irrigados, o litoral de resorts turísticos, essencialmente. Essa orientação leva á extrema fragmentação, que encontra aliados no âmbito dos processos de estadualização e municipalização de muitas políticas, se levarmos em conta as composições em geral bastante concentradas das forças políticas que controlam o poder nos estados e na maioria dos municípios. Em suma, a tendência seria de fortalecer quem já é forte e relegar ao abandono, temperado por algumas compensações de ordem social, quem ainda é fraco. O que, no Nordeste, significa a maioria dos lugares.
Nesse ambiente, temos então que prestar a atenção a outras tendências, certamente menos visíveis que aquela descrita acima, mas que ocorrem nesse Nordeste de tantas "faces" que não se pode mais falar do Nordeste, mais de vários Nordestes. E, entre esses vários Nordestes, considerar não somente os pólos competitivos e as ilhas modernizadas que conseguem se relacionar com a economia internacional e nacional, mas também às relações que a geografia pode desvendar e que expressam construções sem dúvida de aparência mais modesta, mas em essência mais transformadoras, visando expandir solidariedade e inclusão. Em Fortaleza, centros empresariais e Shopping Centers, mas também Banco Palmas. No sertão, perímetros irrigados do São Francisco, mas também o Projeto Caatinga de convivência com a seca na região de Ouricuri, a oeste de Pernambuco, com agricultores que há mais de vinte anos aprenderam a lidar com a seca. Grandes culturas de exportação, mas também trabalho de duas décadas da Associação Profissional dos Agricultores do Estado da Bahia (APAEB) que na região de Valente conseguiu fortalecer a economia do sisal e garantir retornos sócio - econômicos para os produtores e suas famílias. Grandes investimentos turísticos do litoral potiguar, mas também estratégia de desenvolvimento local da região do Seridó, pactuada pelas forças sociais locais, com destaque para a Igreja. Todas manifestações de solidariedades horizontais (na acepção de Milton Santos), pouco divulgadas e freqüentemente de alcance geográfico limitado. Qualitativamente, desenham o que poderia ser uma política nacional de desenvolvimento regional (na acepção de Tânia Bacelar de Araújo) que levasse em conta os agentes locais, as suas possibilidades de organização e as potencialidades do território, não só para competir, mas antes de mais nada para garantir condições decentes de vida, melhor aproveitamento dos objetos existentes, e introdução de novos, não como encraves mas como possibilidades de inovações inseridas no lugar. Caberia aos governos, fortalecer esses processos capitaneados por agentes locais, permitindo-lhes ampliar escalas e inserir-se numa seqüência cumulativa de desenvolvimento.

Promoção Instituto de Pesquisas Sociais - INPSO, da FJN Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, da UFPE Núcleo de Estudos Estratégicos - NEST, da UFPE
Apoio Prefeitura da Cidade do Recife UNESCO

Fonte: http://www.fundaj.gov.br/observanordeste/obed001c.html

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